O negociar da verdade

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LaTraca1932Não sei de onde vem esse costume de negociar a verdade, de socializar a razão, de repartir diplomaticamente os valores. Radicalidade, nos dias de hoje, é anacrônico, enquanto a autenticidade e a coerência são atacadas pelo pé, num mundo onde se relativiza a moral e ninguém é permitido viver valores autênticos e irrenunciáveis.

Não é incomum ouvir alguém dizer que os dois têm razão, para arbitrar uma discussão. Acontece que poucos têm a humildade de reconhecer o próprio erro e a própria falta de razão, e torna-se até útil e necessário esse repartir e negociar a verdade, até pela virtude da paciência, porque quem tem razão há de se mostrar com o tempo. Virtude da paciência, virtude da tolerância. Não é muito inteligente adiar discussões para a eternidade por não abrir mão da verdade, é mais útil a paz, nesse caso.

Entretanto, esse costume de negociar a verdade não fica só nesses casos particulares e alcança níveis até inaceitáveis, aos quais não se podem abarcar os princípios de paz e utilidade, da paciência e da tolerância. A humanidade, cada vez mais animalesca, adorando o ter, o poder e o prazer, e sem querer abrir mão, em detrimento dos valores evangélicos, dos próprios costumes, quer que a Igreja, sim, se modifique, se adapte ao mundo de hoje. Querem acabar com o celibato dos sacerdotes, querem acabar com a ilicitude do divórcio, querem que a Igreja aceite a relação homoafetiva e até a sacralize pelo casamento, que se abra aos enganos do socialismo e, num grau máximo, que abra mão até da verdade eterna de si que prega para, assim, unir-se a outras religiões até não cristãs.

Acontece que hoje a radicalidade é vista até com maus olhos, tornou-se sinônimo de fundamentalismo, de ausência de racionalidade e de inteligibilidade, quando, ao contrário, a radicalidade é tudo que a Igreja exorta e o Evangelho preceitua, como diz no Apocalipse: “Conheço as tuas obras: não és nem frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas, como és morno, nem frio nem quente, vou vomitar-te.” — Os cristãos autênticos são recriminados e forçados a negociar seus princípios, trocando o bem-estar na sociedade e a boa convivência com os seus valores, tornando-se, forçosamente, por falta ainda de uma conversão verdadeira e radical, no mais verdadeiro de seu significado, incoerentes com eles mesmos e com aquilo que acreditam.

Radical, ao contrário do que se costuma dizer, é aquele que está enraizado, aquele que sabe bem onde pisa e, desse solo fértil da fé, sabe muito bem em quem e onde colocou a sua fé, e daí retira o seu modo de viver. A maior expressão da radicalidade, pois, é Jesus Cristo, que viveu a Verdade que é Ele mesmo e morreu nela e por ela. A radicalidade do cristão é, pois, por consequência, a estatura de Cristo. Assim, do mesmo modo que é chamado a viver e morrer pela fé, o cristão é chamado a amar sem medidas e afastar-se de todo tipo de fanatismo, intolerância e até mesmo do orgulho da própria fé, a se considerar superior aos demais, pois a autenticidade do Evangelho é morrer de amor por toda a humanidade e servi-la como se dela fosse escravo.

Portanto, diferente do que se espera das nossas relações pessoais, quando podemos abrir mão da nossa própria razão, da nossa vivência como cristão e defesa da fé verdadeira, não nos é lícito, de modo algum, negociar. Os valores do Evangelho têm raízes na eternidade que, como uma eterna idade, não se altera. Não podemos deixar o mundo “modificar Deus”, moldando-O, em nome da própria covardia e fraqueza, segundo a sua vontade, mas, em atitude diametralmente oposta, sermos sal do mundo e luz da terra, conforme nos chama Jesus, o que nós repetimos com a boca cheia, como se fosse um título que temos, e não um dever a ser cumprido.

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A demolição das consciências

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imagemQuem tenha compreendido bem meu artigo “Armas da Liberdade” deve ter percebido também a conclusão implícita a que conduz incontornavelmente: boa parte do esforço moralizante despendido pela “direita religiosa” para sanear uma sociedade corrupta é inútil, já que termina sendo facilmente absorvida pela máquina da “dissonância cognitiva” e usada como instrumento de perdição geral.

Notem bem: moralidade não é uma lista de condutas louváveis e condenáveis, pronta para que o cidadão a obedeça com automatismo de um rato de Pavlov.

Moralidade é consciência, é discernimento pessoal, é busca de uma meta de perfeição que só aos poucos vai se esclarecendo e encontrando seus meios de realização entre as contradições e ambiguidades da vida.

São Tomás de Aquino já ensinava que o problema maior da existência moral não é conhecer a regra geral abstrata, mas fazer a ponte entre unidade da regra e a variedade inesgotável das situações concretas, onde frequentemente somos espremidos entre deveres contraditórios ou nos vemos perdidos na distância entre intenções, meios e resultados.

Lutero — para não dizerem que puxo a brasa para a sardinha católica — insistia em que “esta vida não é a devoção, mas a luta pela conquista da devoção”.

E o santo padre Pio de Pietrelcina: “É melhor afastar-se do mundo pouco a pouco, em vez de tudo de uma vez”.

A grande literatura — a começar pela Bíblia — está repleta de exemplos de conflitos morais angustiantes, mostrando que o caminho do bem só é uma linha reta desde o ponto de vista divino, que tudo abrange num olhar simultâneo. Para nós, que vivemos no tempo e na história, tudo é hesitação, lusco-fusco, tentativa e erro. Só aos poucos, orientada pela graça divina, a luz da experiência vai dissipando a névoa das aparências.

Consciência — especialmente consciência moral — não é um objeto, uma coisa que você possua. É um esforço permanente de integração, a busca da unidade para além e por cima do caos imediato. É unificação do diverso, é resolução de contradições.

Os códigos de conduta consagrados pela sociedade, transmitidos pela educação e pela cultura, não são jamais a solução do problema moral. São quadros de referência, muito amplos e genéricos, que dão apoio à consciência no seu esforço de unificação da conduta individual. Estão para a consciência de cada um como o desenho do edifício está para o trabalho do construtor: dizem por alto qual deve ser a forma final da obra, não como a construção deve ser empreendida em cada uma das suas etapas.

Quando os códigos são vários e contraditórios, é a própria forma final que se torna incongruente e irreconhecível, desgastando as almas em esforços vãos que as levarão a enroscar-se em problemas cada vez mais insolúveis e, em grande número de casos, a desistir de todo esforço moral sério. Muito do relativismo e da amoralidade reinantes não são propriamente crenças ou ideologias. São doenças da alma, adquiridas por esgotamento da inteligência moral.

Em tais circunstâncias, lutar por este ou por aquele princípio moral em particular, sem ter em conta que, na mistura reinante, todos os princípios são bons como combustíveis para manter em funcionamento a engenharia da dissonância cognitiva, pode ser de uma ingenuidade catastrófica. O que é preciso denunciar não é este ou aquele pecado em particular, esta ou aquela forma de imoralidade específica: é o quadro inteiro de uma cultura montada para destruir, na base, a possibilidade mesma da consciência moral. O caso de Tiger Woods, que citei no artigo, é um entre milhares. Escândalos de adultério espoucam a toda hora na mesma mídia que advoga o abortismo, o sexo livre e o gaysismo. A contradição é tão óbvia e constante que nenhum aglomerado de curiosas coincidências poderia jamais explica-la. Ela é uma opção política, a demolição planejada do discernimento moral. Muitas pessoas que se escandalizam com imoralidades específicas não percebem nem mesmo de longe a indústria do escândalo geral e permanente, em que as denúndias de imoralidade se integram utilmente como engrenagens na linha de produção. Ou a luta contra o mal começa pela luta contra a confusão, ou só acaba contribuindo para a confusão entre o bem e o mal.


Olavo de Carvalho. Diário do comércio, 21 de dezembro de 2009. (O mínimo que você precisa para não ser um idiota, pág. 177)








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