O bonzinho e o outro
Lá se vão caminhando na calçada dois homenzinhos: um é bonzinho e o outro, não; um é ingênuo e o outro, não; um só vê em si bondade e o outro, não. O bonzinho está indo para o trabalho e o outro está fazendo seus exercícios físicos de “headphones”. Os dois estão a pensar...
O bonzinho diz em sua mente: “meu chefe é tão bom, quer que eu seja um homem esforçado. Pede-me para que trabalhe além do necessário, isso porque precisa de mim, porque sou o melhor funcionário, daqui a pouco eu ganho uma promoção!”.
O outro, por sua vez, é dono de uma empresa. E, enquanto corre, pensa nos problemas com os quais vai lidar quando chegar à sede: “meu Deus do Céu, o que é que eu faço? Tenho de demitir funcionários... será que eles vão arranjar outro emprego? Vou me certificar se os documentos deles estão todos corretos, tudo registrado, porque lá vêm mais processos trabalhistas desses safados que querem enfiar a faca na goela da gente!”.
Vejamos o contrário, se fosse o bonzinho o dono da empresa e o outro o funcionário:
O bonzinho diz em sua mente: “por que Deus é tão ruim comigo? Por que permite que isso tudo aconteça? Só porque eu sou uma pessoa boa? O que eu fiz pra merecer? Eu sou um homem honesto, trabalhador, mas bonzinho só se dá mal! Qual é a virtude em ser uma pessoa boa? As pessoas só querem se aproveitar da gente! Fui inventar de dar aumento aos meus funcionários, de liberá-los quando precisassem... No que deu? Esses processos trabalhistas que me ferraram! E eu, que depositei minha confiança neles, fui traído! Mentiram para o juiz e eu não tinha nada comprovando! Que droga! Quero morrer! Sou bom demais para este mundo!”.
O outro é um funcionário de uma empresa: “esse meu chefe é um esperto, pena que ele não é mais do que eu! Enquanto me coloca para trabalhar hora extra e não me paga, eu fico caladinho na minha. Se, por um lado, ele estiver precisando de mim, se ele for um cara bom, uma hora ele vai me recompensar. Se, por outro lado, ele estiver só se aproveitando de mim e me pôr para fora, vou lascar um processo nele!”.
E assim é a vida. Quem se acha o bom e, na sua ingenuidade, não se vê capaz de mal nenhum também não o vê nos outros. Mas aquele outro que reconhece em si a capacidade de ser mau, mas que não o é pela boa educação que teve, por misericórdia de Deus, ou por qualquer razão que seja, esse sim, consegue viver e respirar.
O bom vê maldade em tudo menos em si e, por tanta ingenuidade, acaba por cometer pecados gravíssimos sem perceber. Por outro lado, o outro consegue ser mais misericordioso tanto consigo tanto com os outros e, além de ser mais alerta, consegue precaver-se e arrepender-se de muitas maldades que fez e que seria capaz de fazer, porque as enxerga.
A verdade da cruz
Aceitar a minha parte da cruz, o meu pedaço do pão, o meu gole do vinho. O mistério de fazer parte do corpo santo de Cristo sendo pecador. Ter o Seu corpo em meu corpo, o Seu sangue em minhas veias e, tantas e tantas vezes, não perceber a noção da importância e da gravidade de tudo isso. Quem é Deus e quem sou eu?
Por que tanta misericórdia? Por que tanto amor? Por que tanta paciência? Por que logo eu, tão falho, tão miserável, posso ter Deus habitando em mim? É o Rei que quer morar no casebre da minha vida e deitar na manjedoura do meu coração. É uma terrivelmente humilhante situação, de um Deus tão imenso querer vir caber na finitude tão finita do meu ser.
É um mistério insondável Deus querer dar-me sua dignidade até no sofrimento e, ao contrário, é um pesar imenso não verdadeiramente o habitar. Abandonar o cálice, abandonar a cruz. Tantas e tantas vezes recusei este gole do vinho, tantas e tantas vezes abandonei meu madeiro no chão e me pus a andar. Não, não. Bom e justo é com meu lenho, meu madeiro, minha cruz, meu esteio, pôr-me de pé e entre quedas, verdadeiramente caminhar. Ser um filho de Deus de joelho roxo, não um desnaturado frouxo.
Os gritos e silêncio de socorro
Malditos somos quando o mundo inteiro gira ao nosso redor, malditos somos quando nos achamos acima dos outros, quando nos fechamos em nossa soberba e não prestamos atenção nas pessoas que existem além de nós, dos seus gritos e silêncios de socorro.
O que deve passar, lá no fundo de nossa mente e do nosso coração, quando só damos ouvidos aos nossos desejos, às nossas necessidades, à nossa voz? Que carga negativa é essa dentro de nós que prende ao nosso centro toda positividade do nosso ser? Deixamos tantos ao desprezo, às calçadas da nossa vida, e tudo em benefício da nossa vaidade, da nossa soberba, da nossa autoridade, da nossa individualidade, do nosso bem-estar, da nossa “paz”, dessa felicidade egoísta e egocêntrica. Isso gera respostas, reações às quais não damos a devida atenção, que são os gritos e silêncios de socorro.
É um povo de uma nação que vai às ruas dia após dia para manifestar sua insatisfação porque não é ouvido. É um povo que confronta a polícia, que incendeia carros e ônibus, que saqueia, que devolve com violência por causa da violência de não ser ouvido, a violência do desprezo. Do mesmo modo, um povo que desiste de votar e, porque se vê obrigado a exercer o que deveria ser somente um direito, fá-lo em branco ou nulo. É o seu silêncio de socorro por não ter quem o represente e por viver num país abandonado à desonestidade em todos os seus setores.
Mas também é aquele que vive conosco a gritar, a espernear, a nos faltar com respeito, a quebra as coisas no chão e na parede, a irritar-se a todo tempo com uma paciência de canhão. O que, senão a total loucura, faz com que um ser humano com toda a sua alma se preste a tal comportamento? O que faz uma pessoa voltar-se irada contra aqueles a quem mais ama? Não vejo outra razão, senão um pedido de socorro. Do mesmo modo é aquele que se tranca em seu quarto e se permite ser ausente da convivência familiar, ele lança seu silêncio de socorro que insiste em não ser ouvido.
O que custa, em contrapartida, para aquele que ouve esses gritos e silêncio de socorro, praticar um simples ato de amor? É mais fácil o que está dentro do buraco escalá-lo, ou quem está fora estender a mão? Se fomos criados pelo amor, nossa essência é o amor. Se essa é a natureza da nossa alma, todos esses gritos e silêncio são de socorros de amor, de atenção, de um mínimo de audição aos sentimentos, aos medos, às culpas, às aflições que cada um enfrenta e reage da forma que pode. A família, é claro, é o primeiro alvo, porque é o que deveria ser o nosso refúgio de amor.
E o que fazer? Custa-nos, sim, o nosso egoísmo, mas não é pedir demais a nós mesmos que coloquemos para fora o nosso desejo de amar. Não esse amor que virou sinônimo de sexo, mas o amor mais verdadeiro, de procurar dar um pouco de atenção, seja em casa, para quem puder, seja a um amigo ou mesmo a um estranho. De vez em quando, quando alguém vem desabafar conosco, seja na sua infantilidade, demasiada carência ou mesmo na real necessidade, em vez de ouvirmos, somos tentados a dar-lhe a solução. Ora, até nisso nós temos de ser os senhores da razão? Que custa parar e simplesmente ouvir?
O nosso país, principalmente, está doente. Só se pensa na própria razão, na própria vontade, nos próprios argumentos, nas próprias necessidades. Vejam só: o mais comum é médicos que não dão atenção aos pacientes, advogados que mentem sabendo da justiça da verdade, servidores públicos relaxados e preguiçosos, e, por fim e resumindo tudo, políticos que não dão o mínimo de atenção às reais necessidades da população e colocam acima de tudo qualquer coisa que seja seu, seja o bolso, a ideologia, o cargo ou o partido. Definitivamente, estamos doentes, mas doentes sem amor.
Machismo sexual
Quantas mulheres enxerga um homem? A mãe? A vó? A filha? As irmãs? Talvez umas tias e tias-avós? Primas? Primas talvez. Nessas mulheres, pode-se dizer que os homens consigam enxergar o que realmente faz delas mulheres. Mas, em outras mulheres, o que será que veem? Quando veem, o que imaginam? Há algo de essencialmente pervertido e perverso no machismo.
É fora de cogitação dizê-lo? Que muitos homens veem grande parte das mulheres, sobretudo as belas, como objetos de consumo? Dizer que tem o desejo de possuí-la é termo muito vago, na mente masculina a imagem é de alimentação. Por essa razão, inclusive, que alguns maldosos interpretam o fruto proibido como o sexo. Ora, fazer sexo para eles relaciona-se com o comer e, consequentemente a essa relação, a mulher, em vez de pessoa, torna-se objeto.
Algum mal sucedido na conquista dos corações femininos pode pensar: “Ora, mas a mulher também não é interesseira?” – Não se pode arriscar em dizer que o interesse feminino nos homens poderosos e bem-sucedidos financeiramente não tem a ver com o patriarcalismo do passado? Numa sociedade em que só os homens poderiam trabalhar, as mulheres aprenderam a ser dependentes e custa, mormente para as mais desprovidas de inteligência, deixar tal herança genética.
Voltando à mulher como objeto.
Traços eminentemente machistas que corroboram com o raciocínio, nós podemos encontrar nas religiões, inclusive. No cristianismo, só pela herança cultural machista de qualquer sociedade então existente quando da sua origem, porque Jesus rompe com o machismo e trata homens e mulheres de igual por igual, com raras exceções quando dá preferência às mulheres – até mesmo pode se dizer que só tenha escolhido homens para serem discípulos porque seria um escândalo para aquela época. Por outro lado, porque Davi e Salomão tinham permissão para possuírem (possui-se o quê?) tantas mulheres? Obviamente eles não poderiam, de modo algum, dar atenção a todas as necessidades ao menos afetivas de todas elas. Não. Eles eram o centro. E o paraíso das 72 virgens, o que é, senão o corolário da visão da supremacia do homem sobre a mulher, visão na qual a mulher é o objeto do paraíso dos homens?
E hoje, o que mudou, além de que os homens estão começando a ficar com medo das mulheres? Isso acontece porque, da mesma forma que algumas mulheres não se desenvolveram a ponto de se desvincularem da visão do homem como provedor, alguns homens ainda não caíram na real de que não podem continuar os mesmos estúpidos de outrora. Esses homens que querem comer todas, esses homens que procuram uma mulher com único interesse em sexo (lembre-se que quem escreve é um homem que luta contra esta tentação que é cultural). Mas não é essa a razão dos crimes contra a dignidade sexual? Não é por essa razão que acontecem os estupros? Se os homens vissem a mulher como um todo e, especialmente, como pessoa que tem a si o mesmo valor, não cometeriam jamais tais crimes.
É por essa razão que insisto, portanto, na afirmação de que mulher mesmo, na visão desses machistas, é avó, mãe, irmã e filha. Para alguns, a esposa também (para outros mais leais, também a dos amigos). Fora isso, não procuram eles alguém para conversar, alguém com uma sensibilidade especial, que enxerga e sente o mundo de outra forma. Não. Veem, na verdade, um envoltório de prazer. Vê-se pele, cabelos, olhos, seios, pernas e vagina como fonte inesgotável de imensurável deleite. E assim, reduzem a dignidade da mulher por inteiro e a transformam em apenas um meio de se obter prazer e instrumento pelo qual se exerce poder.
Governar-se para viver
A ninguém é mais difícil de obedecer do que a si mesmo. “Não faço o bem que quero e faço o mal que quero”, parafraseando São Paulo. Como governar-se a ponto de não praticar o mal, e como ter autoridade sobre si a ponto de cumprir todo o bem que se quer? Eis a escola na qual tantos estão no primário.
Pedir um treinador, pedir alguém que nos ordene o que fazer e o que não fazer. Tarefa demasiadamente fácil. A quem Deus ama, dá uma tarefa melhor, recomenda que tenha a si mesmo como treinador. Ora, sempre há de se ser dependente? Não, uma hora temos de chegar na maturidade, e talvez devamos ser os nossos próprios educadores. Ocorre que para tal devemos atravessar diversos obstáculos:
Um primeiro é o governo da razão. Fala-se tanto em filmes melosos em seguir a voz do coração, mas pessoas inteligentes agem mais com a razão, claro que também ouvindo a intuição, o que muitos chamam de voz do coração. Acontece que não há garantia nenhuma de que essa voz do coração não seja o resultado de diversos fatores emocionais e psíquicos e que o resultado pode uma péssima decisão. Inclusive, pode-se utilizar esse método intuitivo para justificar más consequências com a máxima: errei, mas agi com o coração. Não se quer dizer que se viva agora como um robô, mas ao contrário, uma inteligência bem preparada sabe compreender e balizar os sentimentos, as emoções, os prazeres, e também a intuição, que pode ser enganosa.
Outro é de uma dificuldade absurda, ainda mais hodiernamente em que tudo é apelo. Desde carros, eletrodomésticos a comida e bebida. A indústria da propaganda não é nada ética e quer que o produto seja comprado a todo custo. A da cerveja, por exemplo, associa a bebida à mulher, num grande golpe baixo enviam essa informação para o subconsciente dos mais diversos consumidores. Não bastasse, tudo o que se tem é apelo por sexo. As pessoas esqueceram que para cada coisa deve ter uma finalidade e, por isso mesmo, o sexo tornou-se um fim em si mesmo. Desse modo, é terrível suportar essa indústria da carne que tiraniza em comerciais, novelas, filmes, programas de TV, sites de internet e inclusive em músicas. A mentalidade luxuriosa adentra nossa mente e nos torna escravo. Difícil demais é, portanto, abrir mão dos desejos da carne em prol da razão e do reto.
Ainda existem todas as limitações psíquicas e emocionais. Cada um tem na sua história de vida diversas situações traumáticas que atrapalharam a sua formação cognitiva, e tornar-se-á escravo desses traumas até que deseje confrontá-los e dar a eles novo significado, o que seja correto. Uma vida pautada e fundamentada na emoção é o desastre total, e temos demasiados exemplos disso, sobretudo nos artistas que acabam no precipício do suicídio. É o sentimento que domina, seja a paixão ou a tristeza, ou infelizmente também o ódio, que obnubila, obscurece a mente de quem o tem. É assim: a paixão nos impede de trilhar diferentes caminhos, a tristeza nos impede de andar, e o rancor, nos retira caminhos. Este último, o pior, delimita o nosso espaço ao em torno de si mesmo.
Se a educação tem um tempo limite, isso tem um sentido: o nossos pais devem deixar de sê-los para dar a nós o seu lugar. Somos nós, daí então, que devemos estabelecer nossos limites, nossos horários, nossos castigos, nossos deveres, nossos direitos e até nossas premiações. O ser humano não pode ser fraco e deixar essa tarefa para Deus, que não deve ter essa função, mas é a primeira cruz que ele mesmo deve carregar: a si mesmo. Quem não governa a si não se pode dar ao luxo de educar nenhum outro ser humano.
A vida e suas bandeiras
As pessoas e suas irracionalidades: muitas vezes, por empatia, por gostarmos delas, nós as seguimos e concordamos, sem pensar, com tudo o que elas dizem. Pelo nosso time, pelos nossos amigos, pela nossa comunidade, abrimos mão, muitas vezes, do bom senso, perdemos a capacidade de discordar e assinamos embaixo até quando vai de encontro ao que realmente pensamos. Isso aconteceu comigo, e com você?
Em favor do nosso time, deixamos de fazer análises mais aprofundadas ou, quando fazemos, já é sob o jugo do nosso ponto de vista. Isso nas mais diversas matérias: intra e inter-religiosas, políticas, filosóficas etc. O religioso parece nunca contestar sua religião, sua origem, sua validade, sua veracidade e o direitista, por sua vez, parece abominar tudo que o esquerdista diz e vice-versa. Esses são alguns exemplos de como isso ocorre e como algumas vezes alcança a irracionalidade.
É tão difícil assim pensar como o outro? É tão difícil assim desfazer-se, nem que seja por um segundo, da própria opinião? Será que, por outro lado, nossa convicção é tão frágil e se constrói sobre um fundamento tão pobre que contra ela não se pode depositar desconfiança? Tal fortalecimento fictício alcança a magnitude da demonização humana. Ora, nem todo mundo é Hitler.
Para alguns cristãos, só porque se lhes opôem, Nietzsche, por exemplo, é lúcifer, Kar Marx é belial, Simone de Beavoir é lilith, Gramsci é azazel e por aí vai. Demonizamos pessoas como se tudo e absolutamente tudo que elas dizem é ruim e nada, absolutamente nada do que elas dizem, é bom. Na fragilidade de suas convicções, no medo de pensar diferente, esses cristãos se esquecem do conselho paulino de provar de tudo e ficar com o que é bom.
E assim, em vez de nos unirmos, cada vez nos distanciamos mais, ficamos em blocos. Em vez de enxergar as diferenças e pensar um pouco que elas podem nos completar, desqualificamos o diferente, não lhe damos ouvido, nos opomos invariavelmente e nos tornamos inimigos. Entramos em guerra. Entraremos em real guerra se isso não mudar, se não deixarmos de lado o nosso reino em detrimento da sociedade como um todo. Se temos que abrir mão em nome da felicidade e união da nossa família de sangue, porque não podemos deixar de lado esse orgulho infantil em prol da família que pode ser a nossa nação e, num sonho maior, toda a humanidade?
Mas não, infelizmente. Preferimos nos comportar como os patinhos bonitos, isto é, relembrando a história do patinho feio, que não era pato, e sim cisne (que é mais belo que pato). Às vezes somos esses patinhos, que não enxergamos a beleza do outro em nome da nossa, só porque ele é diferente. Talvez ele seja mais belo, talvez ele tenha a razão, e não nós, talvez ele saiba a verdade e não nós. Talvez estejamos errados.
Se Hobbes fosse brasileiro
Das notícias que vejo, ando me perguntando: e se Hobbes fosse brasileiro? Dessa pergunta eu tiro uma conclusão que me faz temer: a de que, nos próximos anos, devemos fazer todo o esforço para mantermos a nossa civilidade, para não cedermos ao homo homini lupus, ou mesmo para não cedermos, parafraseando Augusto dos Anjos, à inevitável necessidade de também ser fera.
Teremos que nos controlar para não andarmos armados nas ruas, mesmo sem porte de arma, com a única finalidade de nos protegermos dos assaltos. Temos que tomar cuidado para não deixar de reservar à polícia a nossa segurança e de não deixar para o Judiciário a jurisdição penal. Afinal, os bandidos não estão nem aí para os direitos humanos; e criminoso rico, que também causa revolta, tem dinheiro para pagar um advogado que lhe diminua ou retire o peso da lei.
Alguns direitos humanos são tão óbvios que não precisam ser citados, mas, porque não são citados, muitos se esquecem deles (embora conste no art. 3º da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948). Um desses direitos é o direito à segurança. Ora, como ter qualquer outro direito sem segurança? Em última análise, a própria liberdade é mitigada e as pessoas têm que, cada vez mais, viverem dentro de suas casas e cercadas de eletricidade. Não se pode mais andar tranquilamente na rua e, em alguns lugares, nem dentro do próprio carro.
Entretanto, um discurso dito “humanista” parece cada vez mais legitimar a inveja, e justifica-se cada vez mais a criminalidade alegando aqueles que cometem delitos são vítimas do sistema. Os políticos corruptos são vítimas do sistema? Os empresários que sonegam impostos são vítimas do sistema? Não! Ser político não é desculpa para ser desonesto, ser empresário não é razão para sonegar imposto e, da mesma forma, ser pobre não é motivo para delinquir.
O resultado? Os bandidos se tornam vítimas e a sociedade, a contrassenso, criminosa. A população que trabalha é opressora e, ao contrário, a bandidagem é marginalizada e excluída. Crime que se justificaria seria o crime famélico (para comer), que, na verdade, nem é crime, mas isso só é justificável como última opção. Quem opta pelo caminho do crime é aquele trapaceiro infantil, que sempre quer passar por cima dos outros e não seguir pelo caminho mais difícil: o da honestidade, o da honra, o da dignidade.
É por isso que continuo me perguntando o que diria Hobbes, se fosse brasileiro. Qual Leviatã seria sua preocupação? Será que acreditaria que também sob o Estado o lobo é o lobo do homem, ou que o lobo pode continuar sendo o lobo do homem se aproveitando do Estado? Será que ele, num ato de indignação, sairia gritando pelas ruas: “eles dão tudo, mas não dão o mínimo, que é a segurança!”? E eu temo a veracidade da sua teoria.
O desafio da obediência
Pela desobediência se perdeu a união com Deus, e pela obediência ela foi recuperada. A obediência é qualidade intrínseca de Cristo, enquanto a desobediência é marca dos soberbos, os filhos bastardos de satanás. Essa soberba, esse desejo reiterado de ser deus, de ser centro, quando não se pode ser, pode não ser geradora de todos os males, porquanto materialismo e sensualismo andam por outras veredas, mas gera os piores. Ela que levou o homem e a mulher, tratados como Adão e Eva, a desobedecerem ao mandamento de Deus. O que há de histórico nesta história é impossível saber, mas ela contém a maior de todas as verdades. Foi a desobediência que nos separou de Deus, e é a desobediência que nos impede de novamente nos unir a Deus pelos méritos de Cristo.
A Jesus não se sabe se foi fácil obedecer, sabe-se que foi sempre e em tudo obediente. Apesar de ser perfeito na obediência, não precisava, até onde se sabe, de um mínimo de hesitação. Filho de José e Maria, aquele sendo um homem justo, e esta sendo a Imaculada Conceição, o modelo perfeito de mulher. Quanto a isso, era “fácil” a Jesus obedecer, porque não havia autoridade a quem se submetesse, em seu seio familiar, que o ordenasse algo fora do esteio divino. A nós, por outro lado, temos nossas dificuldades. Nós homens estamos repletos de pecados, repletos de erros. Dito isso, é importante ressaltar o seguinte, para que não se engane:
É impossível ao homem ter a perfeição da obediência de Cristo. Por mais que vigiemos, por mais que rezemos, sempre pecaremos. Por isso, que não se interprete mal a se pensar que a Cristo era fácil obedecer literalmente, mas que Ele não era sujeito a autoridades falíveis, eis a diferença. O nível de obediência a que Ele se submeteu homem nenhum jamais será submetido. Aliás, ninguém é Deus para, por obediência, morrer pelos homens. E, claro, se fosse pedido para algum homem, que não Jesus, a viver a obediência que ele viveu, nenhum seria capaz. Posto isso, vamos à questão da falibilidade.
Que tudo fosse conforme a vontade de Deus, que tudo Lhe fosse obediente, eis o Céu. Na terra, entretanto, as coisas não funcionam assim: os homens são em maior e menor medida falhos e também vaidosos, egoístas e toda uma infinidade de defeitos que aqui se possa apresentar, sem falar da maldade que dissipa a luz de muitos corações. Acontece que em todo lugar há relação de hierarquia, de sujeição, de autoridade; em todo lugar há quem mande, e quem obedeça. E o cristão como deve ser? Semelhante a Cristo! E Cristo era o quê? Obediente! Obediente a quem? A Deus. Cristo morreu por ter sido desobediente aos chefes de sua religião, aos sumos sacerdotes, que queriam que Ele se calasse. Não sabiam os sumo-sacerdotes que era o oposto que devia acontecer, e Jesus pagou por isso.
Então, como ser obediente diante de todas essas realidades? Eis o desafio para o qual é preciso muita coragem e muito discernimento. Precisamos analisar bem cada coisa; cada ato é um desafio propriamente ético de, em cada circunstância, verificar qual a opção que cabe. A opção que cabe, para o católico, é a vontade de Deus. A questão é quando se entra no dilema entre quando obedecer (virtude cristã) e quando desobedecer (virtude de alguém corajoso). A resolução se encontra quando entendemos que o cristão nunca deve desobedecer, mas sempre obedecer, e obedecer a Deus. Para tanto, o católico vai precisar dizer alguns nãos a autoridades temporais que, porventura, afrontarem claramente ao que seria ordem de Deus.
A ordem principal sempre vem de cima. Para nós, os mandamentos. Depois vem o Catecismo, o Código de Direito Canônico, as regras de ordens, congregações e comunidades, as autoridades locais e imediatas e assim por diante. O que importa é: nenhum pode desobedecer o principal. Qualquer um, até o papa, que ordene algo diferente do que é ensinamento tradicional na Igreja, algo absurdo mesmo, como já houve na história da Igreja, não deve ser obedecido. Um bispo que dá uma ordem, por menor que seja, em desobediência ao papa, não deve ser obedecido. Um sacerdote que dá uma ordem, por menor que seja, em desobediência ao bispo, se o bispo estiver em obediência à Igreja, o sacerdote não deve ser obedecido. O importante é ser obediente a Deus, e o que representa a Deus na terra é a Igreja. Portanto, importa ser obediente na Igreja. Muito raramente (infelizmente já houve na história e se sabe disso) a Igreja vai de encontro ao Evangelho e aos mandamentos.
Há quem possa dizer: “Ah, a Bíblia vem em primeiro lugar...” – Entendo que não. Foi a Igreja que fez a Bíblia e não o contrário. Além disso, cada um pode interpretar algum versículo da Bíblia a seu modo e tornar-se um obediente somente a si, fugindo de qualquer sujeição e vivendo o Evangelho a seu modo e, pior, à revelia, independente. A obediência deve ser, sim, à Igreja e à sua devida hierarquia, salvo, como se entende claramente, alguma ordem contra a moral e a ética cristã, além dos mandamentos de Deus e dos ensinamentos da Igreja. O que estiver fora desse âmbito não recai neste critério.
E o que está fora desse âmbito? Quanto a ordens específicas de superiores, a regra é a da obediência sempre, exceto a impossibilidade evidente de se cumprir. Nesse âmbito, toda autoridade é mesmo decidida por Deus e toda decisão sua está, queira ou não, sujeita aos seus planos. Diga-se isso das autoridades espirituais e eclesiásticas, não das civis. Quanto às civis, no que não contrarie a moral e os bons costumes, devemos também obediência, como já está muito bem explicado no Catecismo da Igreja Católica. Mas, é importante ressaltar que a autoridades imediatas sempre se deve obediência. Claro que cabem exceções, como a saúde, deveres morais, deveres civis e coisas do tipo. Quanto a isso, muitos exemplos de santos atestam o agrado de Deus com os obedientes e silenciosamente obedientes, presenteando-lhes, inclusive, com milagres.
Uma coisa é importante ressaltar: nenhuma autoridade pode interferir em situações de domínio pessoal. Ninguém pode decidir a vocação de ninguém, nem sua forma de vida, nem com quem vai se casar, nem se vai se casar. Há coisas que só conferem à liberdade pessoal.
Portanto, quem obedece a Deus nunca erra, mas quem obedece aos homens, dependendo da ordem, erra sim. Para quem quiser acertar, recomenda-se: coração em Deus, muita fé, coragem e boa sorte contra os inimigos e as perseguições que encontrará pelo caminho, mas que saiba que no final do caminho há uma coroa.
Frozen – Uma aventura congelante
Depois de ter assistido esse maravilhoso filme da Disney, não me contive em inaugurar esse novo espaço do blog. Chegou o momento de dizer que, de agora em diante, irei comentar alguns filmes que assistir nos cinemas da vida, ou quem sabe fazer alguma indicação de outro filme que já tiver saído de cartaz há pouco ou muito tempo. Como é o primeiro texto, não esperem muita organização de pensamento, vejam só um ponto de vista diferente, mais na questão que mais amo em perceber em filmes: valores. Vamos lá!
No começo, parecia um musical. Nunca me agradei tanto de musicais, por achar que era um musicalizar tudo. Embora ame música como muita pouca coisa nessa vida, sempre me cansei ao ver musicais. Mas, eu amei as partes musicais de Frozen: os duetos, as harmonizações em terças e quintas, a naturalidade inclusive dos graves masculinos no início do filme, e o agudo final extremo (e no lugar e na hora certa) da música em que acabou a parte musical. Perfeito! Mas vamos para a parte importante!
A carga simbólica do filme é extraordinária (que se preste atenção nas figuras e nas cores de vários momentos)! E são muitos pontos que podem se exaltar, por isso, para concorrer com a brevidade do texto, vou focar nos mais importantes, os quais devemos levar para a vida inteira.
Uma coisa pode passar despercebida, mas creio ser de extrema importância: a capacidade de utilizar os dons para o bem ou para o mal. Até mesmo antes disso, há de se ressaltar a necessidade de utilização dos dons. Muitas coisas podemos achar que temos de mal, e que por causa disso devemos nos esconder, mas o luzeiro não pode se esconder debaixo da mesa. Os dons são feitos para serem utilizados, e são da maior diversidade possível! Que ninguém tenha medo de ser especial. Aceitar a vocação, seja ela grande ou pequena, é algo estritamente necessário para a nossa conformação conosco mesmo. Ao contrário disso, vive-se em completo desespero, na busca de ser alguém que não se é.
Continuando. Após a revelação do dom, houve o problema, em virtude disso, da falta de preparação, da falta de sentido. A personagem, com o seu imenso potencial, foi causa de destruição e aflição para todo aquele ambiente. A vida de todos ao seu redor dependia de si, e o egoísmo dela, a fuga dela para viver numa vida diabolizada, voltada para si mesmo, só causava mais medo a todos, que começavam a temer pela própria vida. Para nossa felicidade, digo de mim, do meu cérebro e da minha alma, a alteza descobre como controlar, direcionar, como dar sentido ao seu potencial, ao seu dom, e sua vida adquire uma realização que nunca antes teve. Ela viu-se feliz, porque descobriu no amor, no esquecimento de si, no voltar-se para o outro, o calor que faltava em sua vida. Aí pôde, enfim, utilizar seu talento, não mais para a morte e a destruição, e sim para a alegria e o bem de todos.
E aí está o maior mérito do filme, na revelação do verdadeiro sentido do amor. Revelação, diga-se, a termos de filmes da Disney, a termos de contos de fadas. Quanto a isso, para os adultos, houve a maior quebra de expectativa da história! – Degustem o sabor das hipérboles... – Todos (inclusive os personagens) esperavam um desfecho diferente e viram-se totalmente surpresos com o que se apresentou! Acontece que o verdadeiro amor não se descobre do dia para a noite, acontece que o amor verdadeiro não é uma mera combinação, acontece que o amor verdadeiro não é somente um amor romântico entre um homem e mulher que os fará felizes para sempre. Aliás, isso é a maior mentira!
O amor, segundo Frozen, e segundo Jesus Cristo, é doar-se até o fim. Como disse este último, o Amor encarnado: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos”. (Jo 15, 13)
Este filme, como se nota, é mais do que recomendado. Nota 11, de zero a dez.
“Jesus é socialista”
A Torre de Papel
A Torre de Babel não precisa ser verdade histórica, para ser a maior verdade que existe. Independente de quantos arranha-céus existirem, de haver uma língua hegemônica, dos cursos de línguas, dos tradutores e, obviamente, de o Céu de Deus não ser esse céu físico, diferente do que se podia, há muito tempo, imaginar, a Torre de Babel não deixou de existir, mas, ao contrário, só cresce e cresce junto a dificuldade de comunicação entre todos os homens.
Careço de fontes de quando isso começou a acontecer. Quem sabe foi com Nietzsche a negar todo o pensamento racional. Talvez tenha sido antes, quando os sofistas diziam que a verdade não existe e pregavam a desonestidade do pensamento. Quem sabe tenha sido ainda mais remota a origem, vindo a ser quando a serpente enganou a mulher e o homem colocou-se como referencial. Ocorre que o relativismo deveria ser pronunciado com “s” ofídico.
O resultado? Cada um passou a criar a sua linguagem, o seu significado, o seu conceito, enfim, a sua racionalidade. Cada um que diga o que quer e coroe com o argumento de que tudo é relativo, e que cada um tem a sua opinião – não importa se essa opinião é falsa, falaciosa, estritamente subjetiva, ou até mentirosa. Então, basta uma significante autoridade moral para criar uma verdade, basta ser doutor para afirmar algo falso e mesmo assim ser ouvido e repetido, basta ser juiz ou ministro de tribunal superior para, com argumentos desonestos, constituir direitos indevidos.
O resultado do resultado? Não se pode nem mais discutir numa mesa: a feminista fala em direitos humanos para abortar e o conservador fala em direitos humanos para o bebê; um fala de dignidade da pessoa humana para promover a eutanásia, e outro para atacar; um diz que ser de direita é ser nazista ou fascista, e outro diz que ser de direita é defender as liberdades fundamentais. Todos se dizem bem intencionados, só que nem concordam quanto ao que é ser o bem, todos dizem promover o amor, só que não concordam quanto ao que é amar, e todos querem, enfim, ser felizes, mas não concordam quanto ao que é felicidade.
Filosofia já há muito deixou de ser a investigação da verdade, e a consequência? Caos. Direito deixou de ser relativo à justiça há tempos, e para a mesma situação jurídica existem várias teses, e cada advogado que crie a sua, em detrimento de toda a verdade. Pelo pensamento racional se passou a estudar sociologia e antropologia, e estas conseguiram, por alguns dos seus, acabar com toda a espécie de pensamento racional e tudo é válido. Que se diga da psicologia que pode ser utilizada como instrumento para deseducar.
Agora vem me dizer que a Torre de Babel não continua em vigor e no auge da sua eficácia?
Precisar?
Imagine que você vive em um mundo diferente.
Faça de conta que não existe pobreza, ou que os poucos pobres que existem são alcançados pelo sistema de assistência social e tenha acesso à educação, saúde e moradia com qualidade e sem restrições. Faça de conta que você não corre riscos de passar fome nem de ficar à míngua do desemprego, porque vive num país extremamente organizado politicamente. Você precisaria de Deus?
Ponha-se na possibilidade de ter tido uma educação excelente. De ter lido grandes filósofos e sociólogos e, por isso, ter uma visão mais crítica e real do mundo, afastando-o de qualquer crendice, superstição, ilusão ou coisa do tipo. Ponha-se na possiblidade de que você compreende o verdadeiro motivo de alguns fatos que alguns dão explicações sobrenaturais ou transcendentais. Você precisaria de Deus?
Projete-se vivendo em um país bastante civilizado, onde as pessoas fossem bem educadas a ponto de terem ideal respeito pelos direitos e liberdades alheios. Projete-se numa vida segura, sem medo da insegurança, sem receio de ser roubado, de ser morto, de ser estuprado. Projete-se na segurança de constituir uma família confiante de que nada faltará aos seus filhos. Você precisaria de Deus?
E se no mundo não houvesse ameaça de guerra, você precisaria de Deus?
Será que precisamos precisar de Deus?
Faça de conta que você alcançou uma vida estável financeiramente. Tem um bom emprego, seus filhos estudam numa boa escola/universidade, tem um bom plano de saúde e vive numa excelente moradia. Faça de conta que tem boas reservas de dinheiro a ponto de não temer um futuro infortúnio. Você não precisa dos seus pais, mas porque não precisa, deixa de amá-los?
Ponha-se na possibilidade de ser uma pessoa sábia e de muito conhecimento. De conseguir refletir sobre os problemas da vida e alcançar soluções. De já ter chegado a uma maturidade suficiente para se autogovernar com tranquilidade e serenidade. Ponha-se na possibilidade de ter descoberto o verdadeiro sentido para a vida. Você não precisa dos seus pais, mas porque não precisa, deixa de amá-los?
Projete-se sendo uma pessoa educada, que respeita os direitos e liberdades dos outros, e assim também é sua família. Projete-se numa vida segura, vivendo longe dos perigos da marginalidade. Projete-se na possibilidade de ter superado os próprios medos e de conseguir enfrentar as dificuldades da vida com coragem e determinação. Você não precisa dos seus pais, mas porque não precisa, deixa de amá-los?
Da mesma maneira que um filho bem-sucedido, nas mais diversas possibilidades da vida, é o sucesso e a realização de seus pais, por que não pensar que um mundo melhor também é o sucesso e realização de Deus para seus filhos? Por que para com os nossos pais, temos gratidão para com a nossa vida e por eles terem nos amado primeiro, e para com Deus não? Por que, quando prontos, buscamos cuidar das coisas de nossos pais, e das coisas de Deus não?
Sola scriptura? Por quê?
A expressão sola scriptura parece ser nostálgica. Não é o latim a língua oficial da Igreja Católica? Deveria ser algo mais como only scripture, ou nur schrift, para ser mais justo. Eu me pergunto, muitas vezes, se alguém que tem a fé baseada nessa expressão e tudo que decorre dela se questiona sobre a validade dela. Nesse ponto, sou obrigado a concordar com Marx, porque uma fé sem fundamento só pode ser a busca de algo, seja por uma religiosidade intrínseca ao ser humano, quanto uma fuga da realidade ou uma forma de maquiá-la. Por que digo isso? Vamos voltar no tempo.
No século, I Jesus morre e ressuscita (e não há nenhum registro de que Ele tenha mandado escrever algum livro); no mesmo século, os apóstolos começam a pregar e disso vêm os discípulos; para que a fé continuasse sendo pregada com autoridade e autenticidade, os apóstolos, que iriam morrer, escolhem os bispos; do mesmo modo, para se comunicarem e terem registros da fé, alguns apóstolos escrevem algumas cartas e um escreve um evangelho, enquanto outros são escritos por seus discípulos – neste ponto, é importante ressaltar que o Marcos, o evangelista, era discípulo de Pedro, o evangelho de João foi escrito por seus discípulos, Lucas não era apóstolo, mas discípulo, e Mateus foi o único apóstolo a escrever um evangelho –; os bispos continuam a missão de Evangelizar nas diversas Igrejas; os bispos vão morrendo, em virtude da perseguição, e se escolhiam outros bispos para o seu lugar; tinham alguns escritos estranhos à fé original e urgiu a necessidade de distinguir quais seriam autênticos ou não. Chegamos no ponto crucial.
Os discípulos de Marcião, por sua influência, aceitava a canonicidade de muitos poucos livros, e já tinha outros, como Orígenes, que aceitavam mais, como o Proto-Evangelho de Tiago, por exemplo. Nisso, no século IV, os bispos, que foram sucessores de outros bispos, que foram sucessores de outros bispos, e assim por diante, decidiram se reunir em um Concílio a fim de discutir quais seriam os livros autênticos e formaram uma compilação que se chama Bíblia, ou em claro português: livros. Depois de muita discussão, em resumo, saiu o Novo Testamento que temos hoje, mais o Antigo Testamento da versão grega, a Septuaginta, que era a usada, obviamente, desde os apóstolos. Na versão dos setenta tinham sete livros a mais do que a versão em grego, mas preferiu-se pela grega, por motivos óbvios (ressalte-se que Paulo, por exemplo, usava a versão grega). Foram escolhidos os livros autênticos e acabou-se a discussão (naquele tempo).
Depois de pouco mais de mil e cem anos aparece um revoltado chamado Martinho Lutero, que tinha razão em estar descontente, mas não teve razão em deixar a Igreja jamais, traduz a Bíblia para o alemão, como se fosse patrimônio seu, e a divulga através da imprensa, então inventada naquele tempo. Pouco mais de um século depois, veio essa estória da sola scriptura, baseada sabe-se lá sobre o que, mas, podemos deduzir que seja uma tentativa de originalizar e dar fundamento para o que não se pode dar fundamento: à fé protestante. De fato, é tarefa impossível que facilmente se desmonta, mas que a ignorância e o orgulho impedem qualquer um que a tenha de enxergar.
Não há como se crer nessa only scripture, porque o fundamento da Bíblia está na Igreja Católica. Só se pode crer na Bíblia se se crer na Igreja Católica, porque foi elaborada por ela e pela tradição que foi escolhida. Foram os bispos reunidos em Concílio que decidiram o cânon, não foi a Bíblia que desceu assim, prontinha, como se fosse um livro só. O que garante, para alguém que não é católico, que a Bíblia não é um livro falso, criado para ser instrumento de dominação social? Nada. O que garante para um católico que a Bíblia é palavra de Deus inspirada pelo Espírito Santo? A fé na Igreja Católica.
Crer na nur schrift é como se eu fosse contemporâneo de Miguel de Cervantes, tomasse o seu “Dom Quixote” e dissesse que vale o meu entendimento e a minha interpretação sobre a obra, como se eu a tivesse escrito, em detrimento do autor. É coisa completamente sem fundamento. É, definitivamente, uma casa construída sobre a areia. O resultado, milhares e milhares de denominações e entendimentos diferentes sobre a mesma compilação de livros, como se pertencesse a eles, e não à Igreja Católica.
Sete passos para ser feliz
1º Esqueça a palavra felicidade.
Tire o peso de suas costas da expectativa dessa realidade tão utópica. Não fique esperando a felicidade chegar. Encare a realidade e enfrente o mundo como ele é: imperfeito.
2º Tire esse peso das costas das pessoas.
Não espere que a felicidade venha de uma pessoa. Colocar sobre alguém o peso da sua felicidade, além de ser injusto, vai te fazer completamente infeliz, porque ninguém é responsável pela felicidade do outro. Deus também não responsável pela felicidade de ninguém! Se ele promete, não é de graça.
3º Não dê ouvidos a teologias da felicidade.
Quem primeiro refletiu sobre a felicidade foram os gregos. E essa felicidade, tanto para os gregos, quanto nas vezes que continha no Antigo Testamento, significava prazer e bem-estar. Jesus veio mostrar que essa felicidade de prazer e bem-estar é imperfeita, e nos prometeu o Céu, uma felicidade perfeita. Alegria é fruto do Espírito Santo, mas você não achará felicidade lá no meio. Se Deus chama à cruz, Ele não promete o bem-estar. Por isso, não dê ouvidos a ninguém que promete uma felicidade, mas não dá o conceito dela, nem coloque isso na cabeça, porque vai te prejudicar no futuro.
4º Deus não é responsável pela sua felicidade.
Não tenha fé e esperança em realidades utópicas e hipotéticas. Para que a vontade de Deus seja a nossa felicidade, a nossa felicidade deve ser vontade de Deus. Não espere que não vá ser decepcionado, não espere que não irá ser traído, e não espere que isso virá só do lado de fora, do mundo: as nossas maiores decepções, que mais nos afastam da Igreja, vem de dentro, não de fora. A felicidade é responsabilidade sua, e não de Deus: até o Céu que Ele promete depende unicamente de você.
5º A felicidade é resultado de muito trabalho:
Seja no Céu ou seja na Terra, a felicidade só é resultado, e se ela existe no caminho, é por causa do resultado. O cristão, mesmo que seja sofra nesse mundo, é feliz por causa do mundo que há de vir (essa é a causa dos ateus dizerem que a religião é um ópio, uma droga; entretanto, é a mesma razão da infelicidade deles: a falta de esperança). O cristão não é feliz nesse mundo por causa de coisas desse mundo somente. Se ele for feliz aqui, é resultado de muito trabalho e muito esforço, mas se não for, é porque ele trabalha e se esforça pra ter a felicidade plena, que só haverá no Céu.
6º Esqueça a felicidade.
Parece um paradoxo, mas não é. Quem procura ser feliz nesse mundo, mesmo que com muito esforço, pode se frustrar. Mesmo que tenha alcançado os próprios objetivos, de uma hora para a outra ele pode desaparecer. Por isso, quem visa a meta como felicidade, há de sempre perde-la, porque nessa vida existem muitas tristezas que acontecem, muitas vezes, por circunstâncias que não dependem de nós. A felicidade não pode ser meta do esforço, porque se o resultado não for alcançado, adeus felicidade.
Outrossim, para o cristão a meta não deve ser a felicidade porque sempre haverá um “para si” em cada ato. O cristão, para ser feliz como cristão, deve renunciar a própria felicidade. Deve renunciar tudo que for para si. Repito: quem faz algo buscando a felicidade, faz algo para si mesmo, e isso não deve ser motivação para cristão nenhum.
7º Faça por onde.
Livre as suas costas de todo o peso de uma felicidade falsa e ilusória, encare o mundo com realidade, e enfrente-o. Se esforce para cada coisa que for fazer, que um sucesso ou outro será pura consequência. E com o sucesso vem a alegria, o prazer, o bem-estar, e, consequentemente, a felicidade.
Livre toda sua esperança de uma felicidade nesse e no outro mundo que não vem da própria responsabilidade. Não pense que vai ter a vida eterna vivendo de qualquer maneira. A regra é bem clara: é o amor. E para se amar requer renunciar a si mesmo. A felicidade, no caso, não é resultado, é prêmio, mas quem age buscando um prêmio, não age por amor.
Narcisei
“Minha paróquia é melhor, minha comunidade é melhor, meu ejc é melhor, meu grupo de oração é melhor”. Esse é o pensamento que está por trás de toda crítica que se faz a algo que não é o nosso, que não é o que nós pensamos ou que não é o que nós gostamos. É o orgulho que, em menor proporção, leva a desentendimentos e numa maior, a completa cegueira da realidade, voltando o narciso para si mesmo, onde é a medida de todas as coisas.
Só que esse narciso, em vez de morrer, mata. Por um simples gosto pessoal em não gostar de rock, o orgulho emite uma opinião diferente, porque narciso não pode aceitar somente o seu gosto, mas tem de ser o centro, e diz que rock não é de Deus e aquela banda não pode ser também. Narciso sai espalhando sua opinião e causando divisão, em vez de aceitar que aquelas pessoas procuram evangelizar e devolvem o melhor que tem a Deus. O orgulho de narciso não deixa enxergar o dom que os outros são.
Narciso também quer voltar no tempo, quando a Igreja era como ele gosta que seja Igreja, e não aceita as novidades, quanto menos se adequa a elas. Narciso, em prol do próprio gosto, volta-se contra o próprio papa, se ele age de maneira que não é a que narciso gosta. Narciso, quanto a isso, acha que é conservador, mas não passa de um conservador de si mesmo no centro do jardim do éden.
Narciso cresce como pedra. Inchando-se, e alheio completamente à realidade, absorto daquele orgulho que cega, do qual são domingos falava, considera-se, e usa de qualquer desculpa para isto, infalível. É aquele que chegou ao nível da união hipostática, no ápice do amor esponsal, que já recebeu os estigmas, mesmo que imaginários, e não admite de si nenhum erro, porquanto todos os seus atos são reflexo da sua união íntima e inseparável de Deus. Narciso aí chega num nível tão alto de cegueira, que pode falar sobre narcisismo e não se identificar.
Narciso, infeliz, guarda a si mesmo e a própria vida como um tesouro que ninguém pode tocar, nem Deus. Com sua inteligência insuperável, identifica o erro em tudo e em todos, e mesmo que não consiga superar o que vê em si mesmo, exige que os outros se portem de acordo com aquilo que ele não consegue viver. Narciso não aceita ser contrariado. Nem por Deus, que é o seu supremo bem e quem melhor governa sua vida, com uma inteligência infinitamente superior a de narciso. Narciso, mesmo assim, não o reconhece.
Narciso é também aquele que não aceita a própria limitação intelectual e toma a si mesmo como alguém que pode opinar em algo, mesmo que aquela opinião seja fundamentada em nada mais nada menos do que nada e tenha acabado de surgir no oco do seu saber. Como narciso vê a si mesmo com os olhos de alguém que não se aceita e cria uma imagem que ele quer enxergar, vê sempre uma mentira em si mesmo que os outros não veem, não identifica a sua imagem verdadeira e demoniza os demais.
Narciso está aí em todo lugar, em toda cabeça e em toda alma, só que não se enxerga. Narciso é o causador, desde revoluções e divisões na igreja, a separações entre pessoas que tem o mesmo propósito. Narciso vê tudo em todos, tem todas as soluções para todos os problemas, menos para si mesmo, porque por ser narciso, ele, infelizmente, não os identifica, não os vê. Não os reconhece. Não se reconhece.
Direito de ser autoridade
Porque todas as pessoas deveriam estudar Direito? Para que aprendessem, logo no comecinho do curso, que uma liberdade termina quando outra começa, que o meu direito termina quando começa o do outro. Que existem direitos oponíveis erga omnes, isto é, direitos aos quais todas as outras pessoas devem respeitar. Mas, antes de qualquer outra pessoa, e justamente em razão da função em que esta pessoa ocupa, toda autoridade deveria ter, no mínimo, alguma noção filosófica do que é direito.
No ordenamento jurídico brasileiro existe um princípio, conhecido mais como superprincípio, pelo seu conteúdo, além da razão de ser princípio fundamental, que se encontra na alínea 3, logo do artigo primeiro, que é o da dignidade da pessoa humana. Um cristão só sabe da noção de dignidade da pessoa humana se ler o Catecismo da Igreja ou for estudante de Filosofia, e, claro, por obrigação, de Direito.
O substrato cristão desse princípio é que todos nós, seres humanos, somos filhos de Deus, criados à sua imagem e semelhança e temos, por isso, uma dignidade de valor incalculável a ser respeitada. O substrato secular, kantiano, desse princípio, é que todos nós, homens, seres racionais, temos uma dignidade única e que, independente de cor, sexo, e qualquer outro critério que se possa distinguir uma pessoa da outra, resumindo, não pode ser tratado como objeto nunca, mas, ao contrário, como um fim em si mesmo.
Um juiz de Direito, hoje, no Brasil, é obrigado, por força de lei, a ser muito mais cristão do que alguns que vemos por aí, inclusive sendo autoridades, em razão de o princípio da dignidade da pessoa humana ser orientador de todo o ordenamento jurídico brasileiro, ou seja, toda lei deve se basear na dignidade da pessoa humana, e toda sentença, lei individual, deve se basear na dignidade da pessoa humana.
Entretanto, uma autoridade, em virtude de ser autoridade e ter daí uma infalibilidade que o Papa só tem quando diz ex cathedra, não se preocupa nem com a dignidade da pessoa humana da Igreja, pelo qual ela deve respeito a qualquer ser humano, em primeiro lugar, como filho de Deus, possuindo assim um valor incomensurável, quanto menos com a dignidade secular, pela qual ela deve ver a todo ser humano como um fim em si mesmo, mas, não, ao contrário, faz dos seus sujeitos o meio de alcançar seus fins e se baseia na célebre frase, “quem obedece nunca erra”, de São João da Cruz.
Além do mais, parecem não saber, algumas autoridades, que independente de sua possível infalibilidade segundo a qual Deus, por ser misericordioso, não vai permitir com que a sua ovelha burra e obediente seja infeliz ou ande por caminho tortuoso por conta dela não é verdade e, sim, ela tem a vida de pessoas em suas mãos. Escorando-se na frase, que, quem sabe mesmo se está certa, já que um santo não é O Santo, manda e desmanda na vida de outras pessoas, sem respeitar a sua liberdade pessoal, ao menos que essa pessoa seja um rebelde e respeite a própria liberdade.
Para estas autoridades é que se deve esse texto: para que elas tenham noção de alguns parágrafos do que é direito, do que é o valor de um ser humano, e que, pelo menos em virtude deste texto, gaste uns minutos da sua vida com uma reflexão acerca de seus próprios atos.
Coberto por um véu de seda
De tanto viver, aprendi. Se tenho beleza, tenho valor? Se tenho inteligência, tenho valor? Se tenho dinheiro ou exerço algum cargo importante e de responsabilidade, tenho valor? De fato, quanto mais me faço importante, mais sou valorizado. Quanto mais sou belo, mais as pessoas querem estar perto de mim; quanto mais sou inteligente, as pessoas se agradam com a minha presença e com as minhas palavras e soluções; quanto mais responsabilidade e quanto mais alto o meu status, mais as pessoas me admiram e a minha posição se impõe.
Mas se eu não fosse nada disso? Se eu não cantasse muito bem? Se eu não fosse um excelente ator; se eu não fosse um excelente músico, escultor ou pintor? Se eu não soubesse escrever? Se eu não soubesse falar? Se eu tivesse esquizofrenia paranoide grave ou qualquer síndrome que atestasse minha demência? Se eu fosse miserável a ponto de nada poder oferecer e só poder, simplesmente, pedir? E se eu não tivesse nada a oferecer, se eu não pudesse nada fazer, que valor eu teria? Seria eu valorizado?
Já vi na TV pessoas sendo retiradas até de lixões para serem modelos, numa descoberta de talentos, e assim ela passaria a ser alguém. É o mesmo que dizer: “você não era ninguém aqui, ninguém te valorizava, mas agora você vai ser bonita, vai ter dinheiro, vai ser famosa, e as pessoas vão gostar e dar valor a você”. Fazemos parte desse mundo: o mundo da tietagem, o mundo em que aquele que se destaca é bem visto e bem olhado, e o mundo que, por consequência, as pessoas disputam por um primeiro lugar, cuidam mais do que deviam da própria aparência, e buscam técnicas e mais técnicas, conhecimento e mais conhecimento, poder e mais poder, dinheiro e mais dinheiro, para serem, no fundo, valorizadas.
Todas estas coisas, em si mesmas, não possuem um valor concreto, mas passageiro, por isso acredito que, no fundo, procuram para se sentirem valorizadas. Claro que neste valor em crise, estas mesmas pessoas reconhecem as demais pelo mesmo critério. Estas deviam questionar-se seriamente sobre seu grau de superficialidade, de vazio e de passageiro, em detrimento daquilo que é eterno e verdadeiro, que deveria ser valorizar as pessoas por quem elas são, puro e simplesmente, pelo seu coração. Alguns covardes podem pensar que só Deus os enxerga, mas não, as crianças e os idosos também, e que se pergunte porquê.
Aborto: liberdade para matar
Diz-se que devemos usar, como forma de linguagem, a que o destinatário do texto entenda melhor. Que devemos nos portar diferentemente, quanto ao linguajar, dependendo do ambiente que se está e do receptor. Disse a mesma coisa duas vezes. Então, que já se possa entender que estou me qualificando com o que disse. Irei falar do aborto para os que abortam ou são simpatizantes da ideia. Já estou falando disso e, aliás, tentarei ser o mais breve possível, para que possa ser lido.
Falam que é usar da liberdade, o abortar. Eu me pergunto se existe uma só liberdade, isto é, só a minha, ou só aquele que aborta. É como um adolescente imbecil pode gritar, insatisfeito com a vida, para seus pais: “Eu não pedi para nascer!” – Do mesmo modo, o feto que será morto pelo abortador –criei a palavra– não pediu pra morrer! Pois que eu saiba, liberdade não se vê de um lado só. Bem assim, ó: Se Fulano tem liberdade para matar, Cicrano, que não fez nada contra Fulano, tem liberdade para viver. Uma liberdade confronta a outra e Fulano não pode usar da sua liberdade. Então, para mim, e para quem quiser pensar assim, não existe liberdade para abortar.
Liberdade é um direito, e clamam pelos direitos da mulher sem pensar nos direitos da criança. Ah, claro! Não considera aquele feto como gente, pessoa, aquele que já foi feto um dia. Não há algo de mais contraditório, é como querer, forçadamente chamar branco de vermelho, e vermelho-sangue. Direitos, mais uma vez, confrontam outros direitos, a não ser que um ser humano que irá nascer não tenha direitos. No caso da legislação brasileira, tem. Só que esse pessoal que quer que outros abortem, que são bárbaras pessoas, vão passando por cima de tudo isso, de tudo que é lei, direito constitucional, tratado internacional, e por aí vai, e dizendo-se defensores dos direitos humanos.
Para terminar, só posso dizer que se o aborto não fosse consentido pela mãe, era, em vez de mais revoltante, um mínimo mais aceitável. Não consigo aceitar que uma mãe aborte seu filho, e é porque tenho mãe e é a pessoa mais importante da minha vida. Imagina se minha mãe resolvesse me matar? Se minha mãe tivesse me abortado, eu não estaria aqui escrevendo este texto contra todos esses que, para falar politicamente correto, tem o direito de pensar diferente. Mas, como eu não sou, digo mesmo que estou escrevendo para desumanos, e tenho que chamá-los assim, para que não seja de outras coisas.
Feliz imperfeição
Perfeição, segundo a teologia, é o estado ou condição de quem está livre de pecados. Já num nível menos teológico, é pessoa ou coisa sem defeito. Acaba no final, sendo a mesma coisa, coisa que se refere aos anjos, à Maria Santíssima e a Deus, a suma perfeição. Exclusivamente, estas pessoas são as que se pode referir perfeição e ninguém mais.
E o que se pode fazer, quando, encarnado em si, tem algo dizendo que já se foi perfeito? O que fazer, quando se tem uma sede e desejo de ser Deus, algumas vezes inclinadas para o desejo de perfeição? O que dizer, quando Jesus disse: “Sede santos, assim como vosso Pai celeste é santo". (Mt 5, 48) – Esse sentido de santidade, em um primeiro modo, remete à perfeição, não é? Então, o que fazer se não se pode alcançá-la em tão alto grau?
Dependendo do ponto de vista, pode ser um peso ou um alívio, a ausência de perfeição. Um peso quando se quer porque se quer ser perfeito e não se consegue, porque se quer porque se quer cumprir com as promessas feitas e não se consegue, porque se quer porque se quer não pecar e não se consegue. Não há como ter esta mentalidade e não viver com um tronco no lugar de uma cruz a se carregar, cruz esta que deveria ser um pedaço de madeiro, o que já é bastante pesado, inclusive na simbologia da coisa. Mas, que se dirá de um tronco? É cruz plus.
Por outro lado, pode ser um alívio, e que alívio pode ser não ser perfeito. Imagine saber que muitos dos erros são sem querer, que por mais que se possa tentar acertar, não se consegue. Imagine, saber que não se errou por mal, que se soubesse o certo, certamente o faria, que se fosse mais livre e tivesse menos inclinações não teria errado tanto. Imagine só não ser como Lúcifer e não carregar pela eternidade a consequência de um pecado, mas, ao contrário, admitir o próprio perdão, porque, simplesmente, não se é perfeito. Imagine não só perdoar, como também merecer o perdão de todos que tiverem a disposição de fazê-lo! Imagine! Imagine, ainda mais, deixar Jesus ajudar a cada um a carregar a própria cruz naquela que já foi carregada por Ele e por toda a humanidade de todos os tempos e eras. Ah, isso é um tremendo de um alívio.
Que caminho de perfeição se trilha ou se deve trilhar? O de reconhecer que isso não é um peso e que Deus em si será perfeito, enquanto cada um, por si mesmo, não é nada mais do que um verme miserável. Quem caminha um caminho de se aperfeiçoar, caminha um caminho sem Deus e não sabe – deveria ser budista. O cristão, na verdade, é aperfeiçoado, é moldado pelo amor de Deus, amor este que se manifesta nas mais diversas formas, inclusive nos dons e frutos do Espírito Santo que transformam tudo aquilo que por nós eram vícios em maravilhosas virtudes.
É tudo, portanto, uma questão de configuração – “Importa que ele cresça e que eu diminua.” (Jo 3, 30); “Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim.” (Gal. 2, 20ª) – e não uma questão de autodestruição e de esforço sobrenatural e de autocomiseração e de autoflagelação e de autodesistência. Não. O que Jesus diz é o diametralmente oposto: “Misericórdia eu quero, não sacrifícios. De fato, não é a justos que vim chamar, mas a pecadores".(Mt 9,13)
Carta ao Eu-lírico
Querido Eu-lírico,
É com muito pesar que eu noticio a morte das suas musas. Tenho me questionado muito sobre o sentido do que é poesia no meu ponto de vista da arte e como arte, e vi que não há mais razão para a existência delas.
Confesso que me vi decepcionado quando soube de outro escritor, que se acha também poeta, que queria competir com os seus poemas de amor. Disseram-me ontem e pensei muito em você, porque conheço a sua total desaprovação a qualquer tipo de comparação, a não ser para dizer que Augusto dos Anjos era o melhor de todos.
Mas, sério, disputar poesia é como disputar um coração de uma mulher, é tratá-la como objeto, troféu, e não como a obra mais perfeita da criação que, não por acaso, possui o coração que ama com mais perfeição, que é o coração de mãe. E você sabe da minha opinião: que quem merece o amor de uma mulher é o dono vara que floresce, como São José, bem como escrevemos: “...se é amor de amor/ Foi do amor Dele que se nasceu”.
Por isso, Eu-lírico, não vou deixar mais você escrever romanticamente. A partir de ontem em diante, sou eu que escrevo, e só serão amores de verdade. Nada mais que se fale de um verdadeiro sentimento será dedicado publicamente. Afinal, porque receber elogios e encantar a mais de uma mulher com palavras devidamente endereçadas? Creio que se é por amor, só me basta, agora, um sorriso.
Não vejo mais sentido em aproveitar-me do amor senão for para falar sobre ele, no seu mais amplo sentido, e para isto não preciso de musas. Você se lembra de quando escrevemos o “Amor Esponsal”? Lembra-se de como é belo e verdadeiro? Não foi necessária nenhuma musa, tudo foi puramente abstrato, como uma tese em forma de poesia. E não ficou bom? Não ficou verdadeiro? Pois é assim que escreveremos de hoje em diante.
Estou entregando agora a você não mais uma musa, mas milhares de objetos a se pensar e criar. E só para lembrar que é meu nome que está em jogo, já que eu não dei a você nenhum, senão aquele que aprendi nas minhas aulas de literatura. Você é Eu-lírico e pronto. Eu tenho meu nome e quem lê me sabe. Não vou esconder-me nas costas de um pseudônimo (você sabe das influências que eu tenho de Schopenhauer).
E é assim, companheiro, que me despeço, e dispenso você de mais esse trabalho. Quando for falar do eros, deixa que eu falo e se cale. Pois, enquanto eu for vivo, meus poemas de amor só abrirão um sorriso. Confesso que fico triste toda vez que você perde uma musa e a poesia só fica com palavras, é triste. Por isso, tomei essa decisão também por você, e não ache que foi uma decisão precipitada e nem que vou voltar atrás, você sabe muito bem que eu não vou.
Do seu companheiro de longos dias,
Poeta.
Ps.: Quando restrinjo esse amor ao “eros”, você sabe do que estamos falando. Entendido? Pode se alegrar!